“O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: – na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim”, Nelson Rodrigues

Capa de A Menina Sem Estrela, livro de memórias de Nelson Rodrigues (Foto: Divulgação)

Os tempos hoje são outros é verdade, mas se a gente não se cuidar pode ser pior que no passado. Não esqueço de um trecho que li do livro de memórias de Nelson Rodrigues, “A MENINA SEM ESTRELA”, onde ele narra o que viu aos seis anos de idade sobre a gripe espanhola.

“Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: – na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na Espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam, lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém… Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos. Era em 1918. A morte estava no ar e repito: – difusa, volatizada, atmosférica; todos a respiravam…. De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam, humilhados e ofendidos, numa promiscuidade abjecta. A peste deixara nos sobreviventes, não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Eu me lembro de um vizinho perguntando: -“Quem não morreu na Espanhola?”, escreveu Nelsonj Rodrigues.

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