E a GLOBO mais uma vez decepcionou…

Por Naira Soares*

Eu, irmã de autista, fiquei muito feliz quando soube que haveria na posterior novela das 9 uma personagem autista. Isso deixou uma legião de pessoas felizes Brasil afora, afinal daria maior visibilidade ao autismo o que, provavelmente, facilitaria para as famílias, diminuiria o preconceito e aumentaria a tal solidariedade brasileira.

A atriz dedicou-se 6 meses antes do início das gravações para entender e conviver com o autismo para conseguir externar o melhor possível e, no início da novela, por muitas vezes fiquei emocionada com cenas dela, e assim como a maioria, fiquei indignada com o tratamento da irmã e da mãe com ela. No decorrer da trama, as coisas foram mudando o rumo, ela conheceu o Rafael que a libertou daquela prisão.. ok, legal, bonito, importante, mas de repente A AUTISTA PEDE UM BEIJO E DIZ QUE ELE É METADE DA LARANJA DELA, pera, vamos recapitular, estamos mesmo falando de uma autista, gente? Entendam, se você diz que haverá chuva de canivete a um autista, ele correrá achando que canivetes cairão do céu ! Como que Linda (que possui autismo severo e sem devido acompanhamento) conseguiu fazer uma analogia dessas? Isso não entra na minha cabeça.

Algumas pessoas andaram me questionando se um autista não tem possibilidade de casar e constituir uma família, SIM, SÃO CAPAZES, mas DEPENDE DA SÍNDROME, DO GRAU. Na própria emissora houve um quadro no programa Fantástico sobre esse tema que mostrou um pai que possui autismo e filhos autistas, mas só descobriu o seu autismo após a idade adulta, quando já estava casado e tinha tido uma vida relativamente normal, porém antissocial. O que transpareceu no início da novela é que a síndrome de Linda é severa, tendo então grandes dificuldades de sociabilidade e restrição ao toque, mas eis que DE REPENTE, COMO UM PASSE DE MÁGICA, ela já estava PEDINDO UM BEIJO AO RAFAEL.

Outra coisa, o ser humano tem, por natureza, desejos sexuais a partir de uma certa idade e não é porque a pessoa é autista que seu organismo será diferente, pois pra quem não sabe o autismo é uma disfunção comportamental, ou seja, caso o autista não possua mais algum problema que acarrete em seu corpo, o organismo continua normal. Sendo assim, os hormônios ficam à flor da pele como qualquer outra pessoa, mas – em minha humilde opinião e experiência – acredito que seja muito difícil e raro chegar a ponto de ter consciência de pedir um beijo e, principalmente, de TER UM RELACIONAMENTO, AINDA MAIS AMOROSO como qualquer um de nós, que não possui TEA ( Transtorno Invasivo do Desenvolvimento).

Vamos lá, a GLOBO, como sempre, acabou a imagem do autismo real, aquele que a família a partir do momento da descoberta, luta diariamente pelos seus direitos, principalmente o direito de acompanhamento terapêutico e educacional. O autista ele precisa ser (muitooo) estimulado. Quantas vezes meu irmão tentou algo, como por exemplo pegar uma jarra de suco e colocá-lo no copo e nós ficamos em coro dizendo “vai Cléviton, você consegue, você é capaz, você está de parabéns, vai, você consegue” e após ele conseguir, mesmo que imperfeito, receber uma salva de palmas e aquele lindo sorriso sincero deixar todos felizes pelo resto do dia ? Muitas.

Aí vem o estímulo, o autista ele precisa de uma série de pessoas em sua volta ajudando-o, ele precisa de psicólogo, fisioterapeuta, (psico)pedagogo, psiquiatra, neuropediatra, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, além de uma família e uma escola (muito) dedicada. SIM, ELES PRECISAM DE TUDO ISSO, não apenas de um psicólogo que dirá “Forra a cama que te dou um chocolate” uma vez ou outra e ela obedecerá, não, AUTISTA NÃO É CACHORRO. Isso precisa virar rotina. Meu irmão já tem consciência de algumas obrigações diárias dele, afinal virou rotina. Uma rotina quebrada para eles, acredite, é muito pior do que imaginamos. Algo fora do local pra eles é extremamente pior do que alguém organizar nossa bagunça.

Mesmo sabendo e convivendo com tudo isso há 12 anos vem a GLOBO e o autor (UM FORMADOR DE OPINIÕES, UM DOS MAIS PODEROSOS, DIGA-SE DE PASSAGEM) e criam uma utopia – para que possamos acreditar que seja muito fácil – de uma garota presa pela família, sem contato com a sociedade, que não estuda, que o psicólogo aparece uma vez ou outra, que não é estimulada a fazer nada, e, COM AUTISMO SEVERO (mas com algumas características do autismo leve), que conhece um rapaz que a estimula e que a ajuda, nossa, isso é explêndido, mas SE APAIXONA POR ELE. Faça-me um favor Globo! Ao invés de TENTAR ILUDIR O SEU PÚBLICO, mostre que a maioria dos autistas no Brasil não tem um acompanhamento ideal, que as famílias sofrem (e muito) para conseguirem TUDO. Que os pais não tiveram um aprendizado anteriormente de como é e como lidar com seu filho que será autista (pois não tem como saber). Que a maioria das escolas NEGAM a matrícula de seus filhos por “NÃO ESTAREM PREPARADAS” para recebê-los. ISSO SIM DEVERIA SER MOSTRADO, NÃO UMA ILUSÃO.

*Estudante de comunicação, fotógrafa e irmã de um autista de 12 anos.

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2 Resultados

  1. Aline Muniz disse:

    Seu texto foi perfeito! Nunca convivi com ninguém autista mas sei que a Globo faz tudo para ter ibope. Seria muito mais interessante se a realidade fosse mostrada e não maquiada e transformada num conto de fadas como está sendo. Abraços., e que Deus abençoe você e seu irmão.

  2. Irene Dores disse:

    Parabéns Naira, seu texto está muito coerente e com propriedade. Penso o mesmo que você. A televisão tem a obrigação de informar e colaborar para a melhoria de situações como a dos autistas por exemplo, e não mostrar comportamentos inverossímeis. Alias essa novela foi carregada de informações absurdas e erróneas.

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