A música na política! Ou a política na música?

Por Analista

A relação entre a música e a política deve ter surgido nos primórdios do amadurecimento da vida social. Desde que o homem reconheceu que a arte poderia ser utilizada como meio de convencimento a política dela se apropriou, ou a arte foi sujeito ativo dessa apropriação? Não seria diferente com a música, a matemática cantada, a arte captada pela sonoridade. A intensão não é a realização de uma analise profunda sobre o tema, desejo apenas, humildemente, falar um pouco sobre ele reconhecendo todas as possíveis falhas que a percepção caolha de um apaixonado por música possa ter e para isso faz-se necessário um recorte espacial e temporal.

Vamos começar com a Revolução de 1930, com a ruína da República Velha e inicio de um novo período na vida política brasileira em que o maior líder era um caudilho gaúcho. A sua nova política de valorização do trabalhador, de fortalecimento da indústria nacional e estatização de setores estratégicos da economia, ao tempo que arregimentava seguidores também contrariava interesses. Em 1934, Lamartine Babo, interpretado por Mário Reis, através da marchinha “Parei contigo” externava a sua decepção com o Governo; “Tu és o tipo / Do sujeito indefinido, carcomido / Que só quer tirar partido / Meu Deus, mas é isto / Que se chama ser amigo? / Parei contigo! Parei contigo!”. O sujeito carcomido era Getúlio!

Com o Golpe de 1937, depois de diversas manobras políticas que incluíam acordos e traições, a esperada disputa eleitoral para presidente entre Armando de Salles Oliveira (Manduca) e Oswaldo Aranha (Vavá) não ocorreu. Os compositores Nássara e Cristóvão Alencar, já prevendo o que ocorreria em seguida, compuseram a marchinha “Quem será o homem?” cantada por Silvio Caldas; “O homem quem será? / Será o seu Manduca? / Ou será o seu Vavá? / Entre esses dois meu coração balança porque / Na hora H quem vai ficar / É o seu Gegê”.

Do Revolucionário nascia o Ditador e com ele um novo período de perseguições, controle e censura. Surgia o Estado Novo, Regime autoritário com inclinações fascistas. Quando, numa noite chuvosa de 1939, Ary Barroso escreveu a letra de “Aquarela do Brasil” ele jamais imaginou, ou talvez sim, que a sua obra prima seria objeto de propaganda de uma ideologia política; “Terra boa e gostosa / Da morena sestrosa / De olhar indiscreto / Ô Brasil, samba que dá / Bamboleio, que faz gingar / Ô Brasil, do meu amor / Terra de Nosso Senhor / Brasil, Brasil”. A música, a despeito da sua beleza e originalidade, deu início ao chamado samba-exaltação que visava através do controle e da censura1 transformar o samba, do boêmio, do “malandro”, numa espécie de gênero musical ufanista em prol do Estado Novo.

Outros exemplos de sambas que nasceram com essa mesma empolgação patriótica são “Brasil Pandeiro” de Assis Valente; “Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor” e “Canta Brasil”; “Na beleza desse céu/ Onde o azul é mais azul/ Na aquarela do Brasil/ Eu cantei de norte a sul”, da dupla Alcyr Pires Vermelho e David Nasser.

A relação de Getúlio com a música não se encerra com o fim do Estado Novo em 1945. Através da marchinha “Retrato do Velho” Haroldo Lobo comemorou em 1951 o retorno democrático de Getúlio ao Poder. Interpretada pelo lendário Francisco Alves assim dizia a canção; “Bota o retrato do velho outra vez / Bota no mesmo lugar / O sorriso do velhinho / Faz a gente trabalhar”.

A contestação sempre foi mais inspiradora para os compositores que o simples adesismo. Em 1964 inicia-se mais um período negro na vida brasileira e em 68 com o AI52 o prenúncio dos anos de chumbo. Foi certamente o período mais violento do Brasil republicano e mais uma vez a música cumpriria o seu papel. Impossível não falar de “Pra não dizer que não falei das flores”, composição que inspirou toda uma geração que tinham à esquerda o caminho alternativo para a realização das suas aspirações de justiça e liberdade. Após ser derrotada por “Sabiá3” no III° Festival Internacional da Canção essa música tornou-se o apelo mais eloquente da juventude idealista do fim da década de 60, os versos; “Há soldados armados / Amados ou não / Quase todos perdidos / De armas na mão / Nos quartéis lhes ensinam / Uma antiga lição / De morrer pela pátria / E viver sem razão”, ao tempo que se tornou a mais expressiva voz contra a acomodação, também se tornou um hino contra a truculência e tirania. Curioso é o fato de que o seu autor, Geraldo Vandré, pouco tempo depois ter praticamente negado o conteúdo político da sua própria obra. Dizem que foi devido a sua personalidade excêntrica, ou talvez tenha apenas sucumbido a pressão, ou até mesmo por não ter resistido aos porões da Ditadura depois de ter passado por um horrendo processo de lavagem cerebral. Mas esse é um caso típico da Obra que ganhou vida própria, cujo sentido transcendeu a vontade do seu criador, tanto que Benito de Paula lançou em 1974 “Tributo a um rei esquecido”, uma homenagem a Vandré e ao mesmo tempo um questionamento ao que dele foi feito; “O que foi que fizeram com ele? / Não sei / Só sei que esse trapo, esse homem / Foi um rei”. Mas porque “rei”? Em outra belíssima canção4, conhecida na voz de Jair Rodrigues,

Vandré profetizou; “Na boiada já fui boi / Boiadeiro já fui rei / Não por mim nem por ninguém”.

Antes de partir para o exílio, escondido em uma fazenda no interior de Goiás, Geraldo Vandré recebeu na calada da noite a visita de outro Geraldo, o Azevedo, juntos compuseram “Canção da despedida”, que destacava a sua contrariedade na partida; “Eu quis ficar aqui / Mas não podia / O meu caminho a ti / Não conduzia / Um rei mal coroado / Não queria / O amor em seu reinado / Pois sabia / Não ia ser amado”, e iniciava já com a esperança do retorno; “Já vou embora / Mas sei que vou voltar / Amor não chora / Se eu volto é pra ficar”. A pergunta de Benito é extremamente pertinente: O que fizeram com ele?

Já considerado, dentro do meio intelectual e artístico, o inimigo número 1 do Regime, os censores da época a princípio não suspeitaram de que quando Chico Buarque cantou; “Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / Eu pergunto a você / Onde vai se esconder / Da enorme euforia / Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar”, estava falando para o Presidente Médici através de um recurso conhecido como a linguagem da fresta5.

Depois de gravado e lançado os militares voltaram atrás na decisão e iniciaram uma caça obsessiva ao álbum de Chico, lojas foram fechadas e discos apreendidos, a sede da gravadora Philips foi invadida e milhares de cópias destruídas. Mesmo depois de ter sido exilado e já de volta ao Brasil, Chico ainda era o artista mais perseguido pelo autoritarismo extremista. Várias de suas canções foram censuradas, prévia ou posteriormente, inteiras ou em parte, de linguagem direta ou pela fresta. Foi em 1974 que cansado da perseguição que sofria, Chico lançou o álbum Sinal Fechado, em que ele cantava músicas de outros compositores, entre eles os ainda desconhecidos Julinho de Adelaide e Leonel Paiva. Através de Chico, Julinho cantou “Jorge Maravilha”, canção que tinha no verso “Você não gosta de mim mas sua filha gosta”6 o ápice do bom “malandro” e, “Acorda amor” que dizia; “Acorda amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão, que aflição / Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão”. Não é mais preciso dizer que Chico fazia o papel do intérprete de si mesmo, dificilmente, com a sua assinatura, essas músicas passariam pelo crivo da censura. Essa estória é tão hilária quanto verdadeira.

O início dos anos 70 foram os mais cruéis para os músicos brasileiros! Diversos cantores e compositores foram intimidados, censurados, banidos e exilados. Entre eles Gil e Caetano, que tiveram que deixar o País em direção a Londres, Chico foi para a Itália, Vandré Chile, Alemanha e França. Os motivos nem sempre estavam ligados a mensagem política direta e a crítica ao Regime, a regra também era conter a “subversão”, tudo aquilo que inspirasse a libertação do pensamento e fizesse com que o individuo refletisse sobre a sua existência. Engana-se quem acha que a perseguição resumia-se ao mundo intelectualizado da música, a MPB. Artistas ignorados pelas classes mais abastadas também sofreram com a truculência do período, seja porque intencionalmente desafiaram o sistema vigente ou simplesmente por terem as suas músicas relacionadas a uma atitude contestadora. Um exemplo claro é Waldik Soriano, que apesar da sua controversa personalidade conservadora, diria até bruta, teve problemas com um dos seus maiores sucessos “Torturas de Amor”, cujos versos; “Hoje que a noite está calma / E que minha alma esperava por ti / Apareceste afinal / Torturando este ser que te adora” não foram bem recepcionados pelos censores e a música foi proibida. A falta de amor dos militares os “emburreciam”, já que para eles a tortura se resumia ao pau de arara, choques e afogamentos.

Não tão ingênua, a “cafonice” de Wando também incomodou o canil7, em sua canção “Presidente da Favela” ele enaltece o líder comunitário Dalvino de Freitas que exercia forte influência política na sua comunidade e dizia; “Que sirva de exemplo / A todas as favelas brasileiras / Arranjem um Presidente / De boas maneiras / Que a vida lá no morro será bem melhor”. Num Regime autoritário nada mais desafiador que a influência de se querer eleger o próprio Presidente8. Outro grande sucesso popular que mesmo sem querer teve grandes problemas com a Ditadura foi o arrasa quarteirões “Uma vida só”. A canção foi considerada um ataque direto a política de controle da natalidade vigente no momento e Odair José foi impedido de cantá-la nos seus shows; “Você diz que me adora / Que tudo nessa vida sou eu / Então eu quero ver você / Esperando um filho meu / Então eu quero ver você / Esperando um filho meu / Pare de tomar a pílula (3x) / Porque ela não deixa o nosso filho nascer”.

A paranoia truculenta dos militares não isentou se quer a dupla Dom e Ravel, autores da odiosa “Eu te amo meu Brasil”, um dos símbolos do Governo Médici, o Presidente mais violento da História brasileira. O governo se mostrou incomodado com a canção “Animais irracionais” que fazia críticas diretas a atitudes opressoras nos versos; “Às vezes eu olho pra terra sem compreender / A luta dos seres humanos pra sobreviver / O grande açoitando o pequeno / Terceiros mandando apartar / Mas na maioria das vezes o grande não quer parar”, e também à postura da Igreja; “Por que deve aos pés de um dos grandes se ajoelhar / Eu passo por muitas igrejas pedindo respostas de deus / Pra ele calado no espaço ouvir os lamentos meus”. Dom e Ravel tiveram importância também para exemplificar que o autoritarismo não era característica apenas do poder político estabelecido. Em sua popular canção “O caminhante” a dupla enfatizava a realidade do trabalhador rural; “Eu ando caminhando por aí / Procurando uma região sem dono, / Local do qual me sinta proprietário, / Usuário do que dele eu extrair. / Tomaram palmo a palmo quase tudo. / Absurdo, eu não consigo acreditar! / Conquistarei um dia o meu lugar? / Preciso tanto recomeçar!”. Em uma das suas excursões pelo interior do Brasil, mas especificamente na região do Araguaia um grupo de fazendeiros impediu que a canção fosse cantada temendo o estímulo a rebeldia que ela pudesse causar nos seus trabalhadores, ainda mais num momento delicado em que, neste mesmo local, guerrilheiros tinham acabado de ser dizimados pela oficialidade9.

A relação entre a música e a política é intensa, é o tipo de tema que jamais será encerrado devido a sua riqueza e grandiosidade. Sempre haverá versos que de forma intencional ou acidental retratarão o sentimento ou se encaixarão perfeitamente na compreensão da vida sócio-política de uma época, seja de forma adesista ou transgressora. A música pode também, além de divertir e emocionar, exercer um papel que transcenda e liberte o ser humano das amarras que acomodam a sua existência.

1. Para essa empreitada foi criado o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda)

2. O Ato Institucional de número 5 é reconhecidamente o golpe dentro do golpe. Com ele foram suspensas varias garantias constitucionais e o Congresso Nacional fechado.

3. Composta por Chico Buarque e Tom Jobim interpretada por Cynara e Cybele no III Festival Internacional da Canção. Mesmo debaixo das vaias ensurdecedoras do público, a canção foi a grande campeã da noite.

4. A canção chama-se “Disparada”, vencedora do Festival de Música Popular Brasileira de 1966 junto com “A Banda” de Chico Buarque. Vandré a compôs com a parceria de Théo de Barros.

 

5. Termo utilizado pela primeira vez por Caetano Veloso na canção “Festa Imodesta”.

6. Julinho, ou melhor, Chico, referia-se as declarações públicas do então Presidente Geisel e de sua filha Amália.

7. Jargão militar, cujo significado estava ligado às atividades burocráticas da corporação.

8. Créditos a Paulo Cesar de Araújo, informações retiradas da sua fantástica Obra “Eu não sou cachorro, não”.

9. Referencia a guerrilha do Araguaia. Dissidentes do Partidão e adeptos da ideologia comunista chinesa tentaram iniciar uma revolução através do “foquismo”.

Músicas citadas:

Parei contigo – Lamartine Babo
http://www.youtube.com/watch?v=aw-KHB8w3fI

Quem será o homem? – Armando de Lima Reis
http://www.youtube.com/watch?v=lzdC0py1aXA

Aquarela do Brasil – Ary Barroso
http://www.youtube.com/watch?v=Who9nyCTD_I

Brasil Pandeiro – Assis Valente
http://www.youtube.com/watch?v=iTXWpdkAp6Y

Canta Brasil – Alcyr Pires e David Nasser
http://www.youtube.com/watch?v=D4IcSh9pjfU

Retrato do Velho – Haroldo Lobo
http://www.youtube.com/watch?v=Y8MwBvZ5sL4

Pra não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré
http://www.youtube.com/watch?v=wkEGNgib2Yw

Sabiá – Tom Jobim e Chico Buarque
http://www.youtube.com/watch?v=lhsXWXzh4ow

Tributo a um rei esquecido – Benito de Paula
http://www.youtube.com/watch?v=PI36-TjBkoY

Disparada – Geraldo Vandré e Theo Barros
http://www.youtube.com/watch?v=82dRs2z6iQs

Canção da despedida – Geraldo Vandré e Geraldo Azevedo
http://www.youtube.com/watch?v=HbJ3AINa9_w

Apesar de você – Chico Buarque
http://www.youtube.com/watch?v=R7xRtSUunEY

Festa Imodesta – Caetano Veloso
http://www.youtube.com/watch?v=6CQunsi25_Q

Jorge Maravilha – Chico Buarque (Julinho de Adelaide e Leonel Paiva)
http://www.youtube.com/watch?v=3mguOqshI6I

Acorda amor – Chico Buarque (Julinho de Adelaide)
http://www.youtube.com/watch?v=kMmlXCcRjJc

Torturas de amor – Waldik Soriano
http://www.youtube.com/watch?v=7-kHtzijxtw

Presidente da Favela – Wando
http://www.youtube.com/watch?v=unD5CKD3KZ4

Uma vida só – Odair José
http://www.youtube.com/watch?v=E9uVeecg1ZI

Eu te amo meu Brasil – Dom e Ravel
http://www.youtube.com/watch?v=KKnoxfKqKkI

Animais irracionais – Dom e Ravel
http://www.youtube.com/watch?v=LofFghy5-_w

O caminhante – Dom e Ravel
http://www.youtube.com/watch?v=Ufi80fJtDbA

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2 Resultados

  1. XPTO disse:

    Caro Analista, seus artigos faziam falta em Pelegrini.

    Sobre o seu excelente e douto artigo relacionando música e política, não se esqueça que Platão, no Magna Opus “A República” defendia que os poetas fossem banidos da pólis (a cidade), por saber da capacidade deles em, através da arte, atingir mais o íntimo dos er humano do que mil arrazoados lógicos…

  2. Afonso Dinis disse:

    Bem, o que você diz no seu artigo casa muito com as ideias de Slavoj Zizek…

    https://www.youtube.com/watch?v=-eChRVNdW94

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